Categoria: Escritos

Em 2016 e sustentado por uma investigação multidisciplinar, teve início o restauro do túmulo com os restos mortais do rei D. Dinis (1261-1325). Um dos resultados deste processo foi apresentado no dia 7, marcando o início das comemorações oficiais dos 700 anos da morte de D. Dinis: um retrato em 3D do rei, baseado em dados considerados “seguros” por Eugénia Cunha, professora catedrática da Universidade de Coimbra, que coordenou uma equipa interdisciplinar de investigadores, ainda que ressalvando tratar-se de resultados preliminares da pretendida reconstituição. A partir do ADN recolhido num dente, numa falange e numa amostra do fémur, foi possível chegar à tonalidade da pele, cor dos olhos e identidade geográfica.

Ficou a saber-se que o rei tinha, à data da morte, uma face enrugada e de cor pardacenta, olhos pequenos e claros, mais propriamente, azulados, um cabelo desgrenhado e hirsuto, barbas de milho e a dentição completa, apesar de esta não ser visível no retrato. Parecendo um morto a quem se esqueceram de cerrar as pálpebras, confirma-se que o rei está morto.

Para lá da confirmação deste facto, a qual é obviamente desnecessária, fica a perplexidade subjacente a múltiplas dúvidas e questões: a quem interessa tudo isto?; qual a relevância para a compreensão do passado; qual o contributo para a memória e para o conhecimento da personagem histórica e da sua importância histórica?; para quê este aparato mediático em torno de um resultado científico que em nada contribui para alterar ou melhorar as nossas vidas?; qual a veracidade da reconstituição, ou onde termina a leitura razoável dos dados arqueológicos, antropológicos e genéticos e começa a sua efabulação, ou a invenção fantasiosa? Mesmo reconhecendo o mérito da investigação para a ciência forense, atualizando metodologias de estudo e análise, experimentando o uso  de novas técnicas e instrumentos e validando a respetiva potencialidade para a criação de conhecimento, todo este aparato em torno do aspeto facial do rei resulta na perceção de uma enorme vacuidade.

Numa época em que é difícil distinguir entre os factos e a sua manipulação, em que a espetacularidade se sobrepõe à realidade, esta reconstituição serve a cultura de massas, cada vez mais acrítica e recetiva à informação vazia transformada em fama. D. Dinis entrou para a galeria dos famosos, permitindo considerações sobre o penteado ou a forma de colocar a coroa. Falta-nos saber como surgia vestido nos eventos, para tecer considerações acerca do seu aspeto na passadeira vermelha da vida. Porém, os elementos visíveis apontam para um gosto muito duvidoso, um traje carnavalesco coroado de plástico e pedras de imitação.

Quase ao mesmo tempo, no dia 8, os restos mortais de Eça de Queirós foram trasladados para o Panteão Nacional, com grande pompa e circunstância, mas sem a adesão das massas, ou um percetível incremento à leitura das suas obras.

Eça de Queiroz morreu em 16 de agosto de 1900 e foi sepultado no jazigo dos Condes de Resende, que era propriedade da família da mulher no Cemitério do Alto de São João, em Lisboa. Num post publicado no Facebook, Marina Tavares Dias dá conta que, em 1988, encontrou “o jazigo arrombado e o miolo da urna à mostra, com gente a fotografar aquilo e a tentar roubar ‘souvenirs’” o que gerou um longo processo que contou com o apoio de Teresa Patrício Gouveia, então Secretária de Estado da Cultura, e que culminou com “a trasladação, em 1989, para o cemitério de Santa Cruz do Douro”. A vontade de trazer o corpo para “junto dos seus”, como se lê na respetiva lápide, foi representada pela sobrinha, Maria da Graça Salema de Castro, fundadora da Fundação Eça de Queiroz, na Casa de Tormes, onde está reunida grande parte do espólio do escritor e a da sua esposa. foi Incúria da família que deixou o túmulo ao abandono, desprezo do Estado que descuidou os restos mortais de um dos mais notáveis vultos da literatura portuguesa. Porém, nesta pmodernidade líquida em que o valor da permanência e da continuidade (o “sólido”) é substituído pelo provisório e pelas glórias efémera, ainda que ampliadas ao limite da globalização (o ”líquido”) (cfr. Bauman, 2000, 2018), os restos mortais tornaram-se pretexto para um longo processo iniciado por Afonso Reis Cabral, trineto do escritor e atual presidente da Fundação Eça de Queirós, contrariando todos aqueles que consideram Tormes como o seu lugar mais dileto e, portanto, aquele onde, no confronto entre a cidade e serra, teria escolhido para sepultura.

Dos 22 bisnetos de Eça de Queiroz, 13 concordaram com a trasladação para o Panteão Nacional, três abstiveram-se e os restantes recorreram a providências cautelares para a impedir, até aos últimos recursos, quer junto do Supremo Tribunal Administrativo, quer junto da presidência da Assembleia da República. Porém, ao cabo da contenda jurídica que se prolongou por quatro anos, a trasladação foi aprovada por unanimidade no Parlamento. A par desta decisão, há a garantia, por parte do Ministério da Cultura, de um apoio de 75 mil euros para projetos futuros da Fundação Eça de Queirós. Como à mulher de César não basta parecer, fica no ar a sensação uma contrapartida à encenação de uma homenagem oficial altamente mediatizada e protagonizada por uns quantos Gouvarinhos empertigados. Se a homenagem se poderia fazer com a colocação de um cenotáfio, qual o sentido de tudo isto, fazendo ombrear Eça de Queirós com a Amália e o Eusébio no panteão dos heróis da nação, tornando-o um troféu na prateleira do poder político? Aquela que seria mais uma devida homenagem tornou-se uma fanfarra, daquelas que Eça se empenha em desmontar, desvendando-lhes o ridículo e a vacuidade.

Entretanto, soube-se que Cristiano Ronaldo comprou o avião mais luxuoso do mundo, feito especificamente para si e que inclui uma biblioteca recheada com milhares de clássicos da literatura portuguesa dos séculos XIX e XX, onde Eça também repousará em paz.

Referências bibliográficas:
Bauman, Z. (2000). Liquid modernity. Cambridge, UK: Polity Press; Malden, MA: Blackwell.
Bauman, Z. (2018). Born liquid: transformations in the third millennium. Cambridge, UK; Medford, MA: Polity Press.