Corpus: a exposição do intangível em espaço museológico

Exposição “Corpus: ritualidade, forma e presença”
Leiria, Museu de Leiria (22 maio – 31 dez. 2024)

Os valores patrimoniais envolvem critérios conotativos, como a preciosidade ou a riqueza material, a qualidade estética ou artística, a autenticidade ou a raridade, e que estão estabelecidos de forma consensual e convencional, mas, através da crescente importância atribuída ao património intangível, os critérios denotativos, tais como as crenças, rituais e uso associados ao objeto em paralelo com a sua identidade simbólica e arquetípica, têm vindo a implantar-se como fatores determinantes na constituição do discurso museológico. Porém, as estratégias museográficas, como a introdução de barreiras, plintos e vitrinas, contribuem para a perceção da ‘coisa’ em objeto de arte, ou seja, “to transform almost anything they [museus] exhibit into a work of art (Putnam, 2009, p. 36); por conseguinte, também o objeto religioso é habitualmente transformado em objeto de arte (Roque, 2011). A exposição em torno de um conceito intangível através da materialidade dos objetos envolve a construção de um discurso transcendente, mas mediador entre a perceção material e sensorial do observador e o pensamento simbólico que pretende transmitir. Se este é um desafio de difícil realização, a exposição “Corpus: Ritualidade, forma e presença” ultrapassa-o de forma magnificente e modelar no âmbito da museologia da religião.

O tema do mistério eucarístico desenvolve-se em três núcleos, coincidentes com os temas enunciados no subtítulo: “Ritualidade”, “Forma” e “Presença”.

A pintura “Missa de São Gregório”, colocada num painel independente à entrada da sala é utilizada como epigrafe visual a partir da qual se declina o tema da “Ritualidade” através das alfaias relacionada com o ritual eucarístico ou com as celebrações do Corpus Domini.  (Corpo de Deus). A presença axial da pintura constrói a analogia com a presença de Cristo na Eucaristia e com o mistério da transubstanciação e, assim, confere sentido aos objetos expostos em torno.

Exposição “Corpus: Ritualidade, forma e presença”
Leiria, Museu de Leiria
Fotos: MIR, 2014

Também a disposição destes no espaço expositivo evoca as relações espaciais no espaço religioso: os vasos eucarísticos com as patenas e o conjunto de galhetas são aqueles que tocam as espécies do pão e vinho; a estante de altar e, atrás, num nível mais elevado evocam a palavra como parte integrante do ritual; a cruz de altar entre os castiçais, a processional  entre os ciriais e próximo da lâmpada de altar constituem a marca da sacralidade; o frontal de altar em representação da mesa do sacrifício; os paramentos.

Para tornar o discurso mais explícito, a interpretação da função de uso dos objetos é sublinhada pela projeção da pintura, destacando as suas componentes com a respetiva designação e descrição do termo.

A “Forma” é o círculo, símbolo do divino. Enquanto conceito relacionado com o Corpus é o cunho da sua materialidade: o Corpo transubstanciado toma a forma da sua espécie, o pão ou a hóstia recortada em círculo.

A peça fulcral neste núcleo, numa vitrina solta colocada ao centro da sala, é o ostensório, o suporte utilizado para expor a hóstia no espaço sagrado, rodeado por uma auréola radiante que enquadra o exposto como um disco solar, tomado como signo cristológico.

O sacro entitativo do Catolicismo é o absoluto interdito, o que não admite a transgressão ou a passagem para a museu. No espaço expositivo, é evocado através da materialização da forma, a justificar os moldes para a confeção, cozedura e cunhagem das hóstias e expostos ao lado de um outro ostensório em forma de templete.

A “Presença” encerra o discurso e confere sentido à ritualidade e à forma. É o cerne da exposição, o núcleo para o qual tudo converge. O mistério eucarístico funda-se na crença de Cristo presente, em corpo e sangue, na eucaristia:

Para o Cristianismo de sinal Católico, dizer Última Ceia é dizer Primeira Eucaristia. Por essa razão, para a comunidade crente, a celebração da missa não se separa da ritualidade e da forma de uma especial PRESENÇA, a presença de Cristo até ao fim dos tempos, a presença nas espécies eucarísticas, na comunidade que celebra a Eucaristia. (in texto introdutório ao núcleo expositivo)

O eixo onde a presença se materializa é a mesa (o altar) que recupera o sentido de comunhão entre a entidade divina e a comunidade dos homens no cenáculo primacial. Configura-se na representação da Última Ceia, que, aqui, se duplica: primeiro, seguindo a lógica da colocação de uma peça axial, novamente, num suporte independente; e, como pano de fundo e peça chave que encerra a exposição, numa tapeçaria, com desenho de Joaquim Correia e execução da Manufatura de Tapeçarias de Portalegre.

A par desta representação literal da narrativa evangélica, há uma instalação conceptual que reproduz a mesa do Cenáculo. Sobre a mesa, uma pedra, como uma ara, é o suporte de um pão partido, numa alusão à fração do pão eucarístico, em bronze; na pedra, inscreve-se a expressão “MYSTERIUM FIDEI”¹ que dá o título à peça de autoria de Sílvia Patrício. No tampo espelhado da mesa, reflete-se a Última Ceia, de Joaquim Correia, colocada atrás e que, neste aparato cénico, funciona como retábulo, completando a analogia ao altar.

A contextualização da mesa no cenáculo é sugerida pela simulação de uma arcaria, linha de fronteira e de ligação entre o espaço sacralizado e o mundo que o cerca, através de superfícies espelhadas que configuram dois arcos de volta perfeita. Um dos arcos enquadra a vitrina onde se expõem uma bacia e um jarro utilizados na cerimónia do lava-pés na Quinta-feira Santa que evoca a humildade de Cristo a lavar os pés dos apóstolos, limpando-os do pó dos caminhos e purificando-os para a liturgia. À frente do outro, encontra-se um atril numa alusão ao anúncio do verbo consubstanciado.

É o círculo, inteiro ou truncado, que formaliza a imagem da exposição, a hóstia sobre o cálice: duas metades de círculo justapostas são o cálice da “Ritualização”; o círculo, com uma linha circular dourada inscrita, é a “Forma” da hóstia”; duas metades de círculo justapostas encimadas por quartos de círculo, faz uma síntese das imagens que marcam os núcleos anteriores e confirmam a “Presença” na hóstia transubstanciada e que permanece inteira mesmo se repartida após o ritual eucarístico.

Tratando um tema religioso católico, a exposição tem uma função descodificadora que, neste caso, não evita o sentido catequético inerente aos museus eclesiásticos. Apesar de estar instalada num museu municipal, trata-se de uma iniciativa conjunta com a Diocese de Leiria-Fátima, permitindo conjugar objetos do acervo museológicos com alfaias litúrgicas usadas nas celebrações eucarísticas. Esta conjuntura alarga a intencionalidade do discurso para lá do registo religioso para o integrar num universo cultural mais amplo. Não se trata apenas de elucidar um tema religioso, mas de descodificar o uso, a forma e o sentido do nosso património comum.

Referências:
Putnam, J. (2009). Museum as medium. Thames & Hudson.
Roque, M. I. (2011). O sagrado no museu: Musealização de objectos do culto católico em contexto português. Universidade Católica Editora.

1. Mysterium Dei, é o título da encíclica do papa Paulo VI, acerca da Sagrada Eucaristia, publicada a 3 de setembro de 1965. [↩]

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