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Em tempo de ditadura, a arte patrocinada e a arte censurada

A propaganda do regime, para lá das censuras que impunha às artes, assentava em imagens romantizadas de um povo rural e em apropriações de motivos populares. A lição de Salazar, uma série de sete cartazes ilustrados editada em 1938 e distribuída por todas as escolas, especulava as vantagens do regime autoritário que impunha a ordem assente nos três pilares “Deus, pátria e família”.

A lição de Salazar:
Deus, Pátria, Família…
Martins Barata, 1938
Lisboa: Bertrand Irmãos.

Num dos cartazes, é retratado um quotidiano doméstico idealizado, num lar rústico, patriarcal e cristão. O pai chega a casa, com a enxada sobre o ano, sem evidências de cansaço, saudado pelos filhos em exultantes e respeitosas manifestações de alegria, enquanto a mãe, na sua condição submissa, se encontra dentro da lareira, ponto nuclear do lar e espaço uterino do fogo, a preparar a refeição. O homem trabalha para garantir o sustento; a mulher é a cuidadora da casa e da família. Um oratório com um crucifixo entre jarras de flores sobre uma toalha branca e o pão e o vinho sobre a mesa compõem a alegoria religiosa do altar. Para lá da janela, vislumbra-se um castelo com a bandeira nacional hasteada. Tudo é simples, mas limpo e airoso, a mascarar a miséria em que a realidade acontecia.

O regime empenha-se na representação da alegria no trabalho. A arte patrocinada pelo Estado segue as preferências de António Ferro, o ideólogo da Política do Espírito, designação atribuída à política cultural subordinada aos objetivos políticos do regime. Ao longo das décadas de 1930 e 1940, António Ferro veiculou uma ideia de arte popular e do folclore, relançando motivos rústicos e vernáculos com a intenção de educar o gosto e criar um estilo decorativo que incorporasse uma marca modernista sem perder a traça nacional, mas que contribua para a efabulação da identidade rural.

Alentejo
Estrela Faria, 1947-48
Lisboa, Museu de Arte Popular

Através do Secretariado de Propaganda Nacional e, a partir de 1945, do Secretariado Nacional de Informação, António Ferro veicula uma idealizada cultura popular ou, mais propriamente, de uma ruralidade perdida. A ficção do camponês que, embora forçado e trabalhador, se mantém alegre e festivo, é visível nos painéis murais do Museu de Arte Popular. A representação estetizada do Alentejo, por Estrela Faria, é alheia à opressão e às difíceis condições do trabalho no campo, obedecendo à orientação de eliminar os sinais de pobreza, fealdade ou sujidade.

Séries “Mundo rural” e “Vindimas”
Artur Pastor, décadas de 1950-60

O contraste entre a ficção propagandística e a realidade é abismal. A vida real está documentada nas fotografias de Artur Pastor, onde o fenómeno é inverso: o quotidiano é mostrado na rudeza das imagens, ainda que sublimadas por um elevado sentido estético. O trabalho no campo é duro e esforçado ao limite das forças. Como uma metáfora, a mulher ocupa o lugar da besta a puxar o arado que rasga a terra para a sementeira: para lá das lides doméstica que a subjugam, “ajuda” o marido na lavoura. De resto, toda a família é convocada para o trabalho rural, assumindo com naturalidade o trabalho infantil que retirava as crianças da escola para “ajudar” a família. E, porque estes trabalhos eram vistos como meras “ajudas”, justifica-se a diferença no pagamento das jornas, sempre parcas. Os pés descalços enterrados na terra são as marcas da miséria extrema.

O massacre
Álvaro Cunhal, 1951-59
In Desenhos da Prisão. Lisboa: Edições Avante, 1977.

A mesma denúncia é feita sem ambiguidades por Álvaro Cunhal, quer nos desenhos feitos enquanto esteve preso em Lisboa e Peniche, entre 1951 e 1959, mostrando a violência da repressão a par da luta e resistência do povo camponês, quer em pinturas.

Sem título
Álvaro Cunhal, s.d.
(Localização desconhecida)

Aqui, em contraste com as imagens adocicadas em tons pastel, a expressão é intensamente marcada pelos tons terrosos, carregados e contrastantes, num fundo paisagístico árido e desolado, sem vegetação, onde se adivinha a miséria. Um jovem carrega um homem desfalecido, face à lamentação de três mulheres ajoelhadas, numa analogia à iconografia da Lamentação de Cristo Morto, criando uma simbiose entre o camponês e a divindade no destino comum do supremo sacrifício.

As duas versões de uma mesma realidade ilustram o pensamento de Salazar, expresso no discurso que proferiu na sessão entrega dos Prémios literários do Secretariado de Propaganda Nacional:

É impossível nesta conceção da vida e da sociedade a indiferença pela formação mental e moral do escritor ou do artista, e pelo caráter da sua obra: é impossível valer socialmente tanto o que edifica como o que destrói, o que educa como o que desmoraliza, os criadores de energias cívicas ou morais e os sonhadores nostálgicos do abatimento e da decadência. (In: Diário da Manhã, 22 fev. 1935).

O povo urbano, tido como mais permeável a influências perniciosas, vindas de fora, não foi objeto da arte patrocinada pelo regime. Em contrapartida, integra-se nas expressões neorrealistas dos artistas dissidentes.

Gadanheiro
Júlio Pomar, 1945
Lisboa, Museu Nacional de Arte Contemporânea

A obra de Júlio Pomar é um dos exemplos mais explícitos da representação do povo como objeto da sua contestação ao regime, tal como acontece na pintura Gadanheiro. Em linha com a pintura de Álvaro Cunhal, os tons são igualmente terrosos, onde se destaca a lâmina branca do gadanho semelhante à foice da morte. São igualmente explícitos os sinais do trabalho esforçado no rosto deformado e nas mãos calejadas.

O almoço do trolha
Júlio Pomar, c.1946-50
Col. Manuel de Brito

Acontece o mesmo com O almoço do trolha que representa a miséria do povo urbano. Também, aqui e ao nível da composição, se regista uma referência à iconografia cristã da Sagrada Família, realçada pela ponta do xaile enrolada em torno da cabeça do menino como uma auréola vermelha. A figura dominante é a do pai a comer da malga trazida pela mulher que, por seu turno, traz o filho ao colo. Todos são esquálidos, denunciando, expressões, na magreza, nas vestes e no calçado rudimentar, uma situação real de grande pobreza. José Augusto França (2000) designou esta pintura como um símbolo do movimento neorrealista nacional e da resistência antifascista. Apresenta-se igualmente como súmula da arte não comprometida com o regime em tempo de ditadura: Pintado entre 1947 e 1950, O almoço do trolha foi exposto, ainda inacabado, na segunda “Exposição Geral de Artes Plásticas” da Sociedade Nacional de Belas Artes, em 1947, enquanto Júlio Pomar se encontrava preso no Forte de Caxias.


OpenEdition sugere que esta publicação seja citada da seguinte forma:
Maria Isabel Roque (24 de Abril de 2024). Em tempo de ditadura, a arte patrocinada e a arte censurada. a.muse.arte. Recuperado em 28 de Março de 2025 de https://doi.org/10.58079/w9m2


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